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segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A mudança de valores do homo laborans em tempos de Pandemia

Hannah Arendt previu uma sociedade convertida em trabalhadores, homens condicionados à saciedade de suas necessidades primárias e outros escravos de necessidades criadas, necessidades materiais e de consumo. A vida ativa imposta como virtude primordial do ser humano. Virtude colocada acima das atividades contemplativas, tais como,o pensar. Sendo assim, condicionados a um automatismo e como consequência, sem senso crítico, facilmente manipuláveis. No entanto, no último capitulo da Condição Humana ela aborda o processo histórico e a perda de fé do homem pós “era medieval” que pôs em dúvida a imortalidade. O que remete ao momento em que vivemos diante de uma pandemia, o que se coloca em xeque agora, é nossa mortalidade. Agora lutamos pelo mero estar vivo, a certeza do amanhã se esvaiu. Para ela ao perder a certeza do amanhã, o homem é arremessado para dentro de si mesmo. Ele sai do mundo exterior, no qual, nem certeza tinha de que era real e submerge em sua interioridade. Ao se dar conta da realidade do mundo e do seu otimismo acrítico, ele é empurrado para sua interioridade fechada da introspecção e o máximo que pode experienciar seriam processos vazios de cálculos da mente, um jogo da mente consigo mesma. Restando apenas apetites e desejos , anseios sem sentidos de seu corpo , considerados “não razoáveis” por não poder “razoar”com seus cálculos. Essa consciência súbita da imortalidade, de que o dinheiro não compra tudo ou dinheiro nem se quer pode ser usufruído neste momento e nas populações mais vulneráveis a incapacidade de manter sua própria subsistência têm gerado crises de pânico e, muitos casos de suicídio. Um recente artigo publicado no Lancet Psychiatry discute a situação da atual pandemia de Covid-19 e, dentro de suas consequências, especula sobre um possível aumento nos índices de suicídio. Quanto mais a doença se espalha, mais efeitos de longo prazo podem ser sentidos em diversas áreas da vida. O isolamento trouxe essa imersão do homem dentro de si mesmo, para Arendt antes da noção de imortalidade nenhuma das capacidades superiores do homem era necessária para conectar a vida individual à vida da espécie; a vida individual torna-se parte do processo vital e o necessário era trabalhar para garantir a vida de cada um e de sua família. Tudo o que não fosse exigido como ciclo da vida era posto como supérfluo. Uma sociedade entorpecida por sofrimentos individuais, mas que sucumbiam essas dores num tipo de comportamento “funcional”. Para Arendt uma carapaça de aço. O pensamento posto como cálculo podendo ser facilmente substituído por máquinas. A alteridade (alteritas) apresenta-se na presente obra como um aspecto importante a ser observado ,a concepção que parte do pressuposto básico de que todo o ser humano social interage e é interdependente do outro. Arendt afirma, a existência do "eu-individual" só é permitida mediante um contato com outro, pois se trata de algo que ocorre somente na pluralidade humana, sendo que todas as definições são distinções, na qual não podemos dizer que uma coisa é, sem distingui-la de outra. Analisando desta forma, um dos aspectos mais marcantes da complexidade da condição humana é certamente o caráter “paradoxal” dessa “pluralidade de seres únicos”, desse “viver como um ser distinto e único entre iguais”(ARENDT, 2014, p. 223). E isso está ocorrendo mesmo no isolamento, pois ainda assim somos plurais. No contexto político neoliberal houve resistência em abrir mão do trabalho para auto preservar-se. O capital posto acima da vida humana por muitos lideres mundiais foi ponto de partida para um pensamento critico da sociedade. Parte dos membros da sociedade homo laborans obrigaram-se a colocar em segundo plano suas profissões, tida como a própria vida, em prol da manutenção da vida biológica e estes foram arremessados dentro de si mesmo, conscientizando-se de seu total individualismo. Observando o contexto pandêmico mundial parece ter havido uma quebra de paradigmas, na qual, podemos enxergar coisas positivas, como por exemplo,o abandono desse individualismo, a pratica da alteridade como desmoronamento desse sofrimento isolado, colocamo-nos ante a dor do outro. Houve mudança de valores por parte de muitos integrantes da sociedade, estes passam a elevar a escala do valor da vida humana, esta passa a ser mais importante do que gerar capital e também a busca pelo autoconhecimento torna-se indispensável para a convivência consigo mesmo no isolamento social. Sendo assim um pouco mais de humanidade na humanidade. Ao contrário da solitude, condição de quem se isola propositalmente ou está num período de reflexão e de interiorização, o isolamento imposto pela pandemia do COVID-19 foi algo abrupto, imposto. A maioria não estava preparada para estar a sós consigo mesmo e encarar suas feridas ou seu completo esvaziamento de sentido. E por meio desse esvaziamento ou nadificação possibilitou-se construir uma nova subjetividade com mais empatia e valores humanos. Hannah Arendt finaliza sua obra com uma frase de Catão que serve para refletirmos sobre o contexto atual : “Nunca se está mais ativo que quando nada se faz, nunca se está menos só que quando se está consigo mesmo.”